quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

ARGILA


(Aos jovens que neste momento tentam modelar o Brasil para outros destinos)

Por: Tasso da Silveira

Vens a estas mãos, argila pura, quando
tudo em meu ser é eterna despedida
e o silêncio final já vai tombando.

Oferenda profunda e comovida,
Em verdade devera recusar-te:
fora mister toda uma ardente vida

todo um vasto labor de sonho e de arte,
para, alumiando o mundo novamente,
em virginal beleza modelar-te.

Mas teu profundo apelo é uma vertente
de sagrado mistério, e de sagrada
força a pulsar transfiguradamente

Não mais em mim reside, resguardada,
mas em teu fundo plasma, palpitante,
vívida, a gensíaca lufada.

Se sobre ti me curvo, ainda hesitante,
e te tomo nas mãos pobres e inquietas
ao fascínio absoluto deste instante,

é porque de ti, límpidas, projetas
formas que vão nascendo, áureas e puras,
como as da alma sonâmbula dos poetas.

É limbo de onde emergem criaturas
como as de Deus. És fonte alta e tranquila.
Em mim, pois, que pretendes e procuras?

O meu gesto criador, estranha argila,
ante a força de criar que em ti fermenta,
treme, retrai-se, tomba e aniquila.

Ah, mas escuto – sim! que em surda, lenta
linguagem me respondes, misteriosa,
como quem num subterrâneo se lamenta:

“Não vês que toda a pulsação gloriosa
de sonho e vida, de ansiedade imensa,
que em mim descobres na hora milagrosa

nasce na minha massa obscura e densa
a catálise mágica e profunda
de tua fulgentíssima presença?

Não vês que é o teu poder que me fecunda
e a alvorada de amor que em mim desperta
só de teus fundos êxtases é oriunda?

Sou argila? Modela-me! Liberta
as formas puras que em meu plasma virgem
lutam por emergir da escura e incerta

noite que sou. E que, a gemer, se afligem
por fundir-se em teu sonho de beleza,
pois teu sonho lhes é substância e origem!”

Ouço que assim me falas. E à surpresa
da alta revelação que propicias,
tenho minha alma em nova luz acesa.

Compreendo agora (em horas bem tardias!)
a suprema razão do meu ânseio,
dos meus deslumbramentos e agonias.


Agora vejo que o sagrado veio
da magia criadora o Deus Eterno
por nós dois repartiu-o, meio a meio.

Sem ti, me esterilizo e desgoverno.
Sem mim és massa inerte, muda e triste.
Juntos criaremos o esplendor supremo.

da obra que desejei e me exigiste.
E ela fará pensar, talvez, a alguem
que sonhando a contemple: “Deus existe
e é dessa fonte que a beleza bem”.


Tasso da Silveira (1895-1968)